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EXCLUSIVO: O Coaching na obra de Fernando Pessoa

No verão passado, numa livraria em Lisboa, encontrei um livro que, não tenho ideia porquê, chamou a minha atenção. Mais tarde, no hotel, li-o num sopro, fascinado pela atualidade e pelo poder das mensagens dos poemas escritos há cem anos. Eram os poemas de Alberto Caeiro, um dos heterónimos de Fernando Pessoa.


Sem me propor fazer uma análise da obra gigantesca de Fernando Pessoa, nem uma abordagem teórico às competências de coaching, quero, através desta pequena incursão, provocar-vos uma reflexão, esperando que analogias e metáforas nos ajudem a tornarmos-nos coaches melhores, pessoas melhores. Ao mesmo tempo queria oferecer-vos uma perspetiva nova e despertar a vossa curiosidade para a obra genial deste imenso escritor português.


Uma das competências essenciais de coaching é a Presença (segundo a International Coach FederationICF: “Capacidade para ser plenamente consciente e criar espontaneamente um relacionamento com o cliente, empregando um estilo aberto, flexível e confiante”). Na poesia de Alberto Caeiro, o poeta da Natureza, descobrimos diferentes maneiras de olhar para a realidade. Para percebermos a realidade é preciso estarmos presentes. Presentes não só em momento, mas também em realidade, tal como o poeta nos incita a fazer no poema “Para além da curva da estrada”:


Para além da curva da estrada

Talvez haja um poço, e talvez um castelo,

E talvez apenas a continuação da estrada.

Não sei nem pergunto.

Enquanto vou na estrada antes da curva

Só olho para a estrada antes da curva,

Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.

De nada me serviria estar olhando para outro lado

E para aquilo que não vejo.

Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.

Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.

Se há alguém para além da curva da estrada,

Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.

Essa é que é a estrada para eles.

Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.

Por ora só sabemos que lá não estamos.

Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva

Há a estrada sem curva nenhuma


Assim, é essencial que a nossa atenção esteja dirigida para o cliente, para a pessoa à nossa frente. Não só porque  “Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer”, mas também porque temos o dever de respeitar o nosso cliente, o nosso parceiro, o nosso interlocutor e é o nosso dever dar-lhe a nossa atenção.


A perda desta atenção, descrita duma maneira magistral por Pessoa no “Livro do Desassossego”, leva-nos a uma situação de “vendo sem ver “:


… Na verdade, ao ir, perdi-me em meditações abstratas, vendo sem ver as paisagens aquáticas que me alegrava ir ver, e ao voltar perdi-me na fixação destas sensações. Não seria capaz de descrever o mais pequeno pormenor da viagem, o mais pequeno trecho de visível. Lucrei estas páginas, por olvido e contradição. Não sei se isso é melhor ou pior do que o contrário, que também não sei o que é. O comboio abranda, é o Cais do Sodré. Cheguei a Lisboa, mas não a uma conclusão.”


Esta fuga dos nossos pensamentos e das nossas emoções “para além da curva da estrada” não só é sentida imediatamente pelo nosso cliente (quer frente-a-frente, quer numa conversa telefónica ou através do Skype), mas impede-nos de percebermos a realidade, de estarmos conectados, de criarmos a Confiança com o cliente (ICF: “Capacidade de criar um espaço seguro, um ambiente favorável, que permita progressivamente o respeito mútuo e a confiança”) e impede-nos de escutarmos duma maneira ativa. A Escuta ativa (uma outra competência chave da ICF: “Capacidade de se concentrar totalmente naquilo que o cliente está a dizer ou a omitir, de forma a compreender o significado do que é dito no contexto dos desejos do cliente e para apoiar a autoexpressão desses conteúdos (do cliente)”), é uma competência essencial para um coach e da mesma maneira para qualquer pessoa que  respeite o seu interlocutor e que deseje uma comunicação eficiente, verdadeira.


O grande talento de Fernando Pessoa capta perfeitamente um estado no qual muitos de nós talvez nos tenhamos encontrado no relacionamento com um cliente, um amigo ou um parceiro.


Lembrem-se da sensação desagradável que vocês tiveram quando o parceiro de discussão estava com os seus pensamentos “para além da curva da estrada”:


… fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o rosto muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância — irmãos siameses que não estão pegados… ” – Livro do Desassossego


Mas, pergunto-me, basta estarmos presentes e escutarmos? Encontramos a resposta numa outra joia do poeta, „Não basta abrir a janela”:


Não basta abrir a janela

Para ver os campos e o rio.

Não é bastante não ser cego

Para ver as árvores e as flores.

É preciso também não ter filosofia nenhuma.

Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.

Há só cada um de nós, como uma cave.

Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;

E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,

Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.


Portanto, é essencial olharmos para o nosso cliente com curiosidade, sem ideias preconcebidas ou impressões prévias. Perspetivando a realidade diante de nós através das nossas opiniões e ideias preconcebidas deixamos de vê-la, só veremos a imagem que criamos nas nossas mentes. Deixamos de ver o nosso cliente, vemos, tão somente, a ideia que fazemos dele.


Mas, mesmo que consigamos estar presentes, escutar e ver, dêmos mais um passo. É necessário não julgarmos, não nos posicionarmos acima ou abaixo do nosso cliente ou interlocutor, mas apenas aceitarmos e olharmos para as diferenças entre nós com curiosidade:


O quê? Valho mais que uma flor

Porque ela não sabe que tem cor e eu sei,

Porque ela não sabe que tem perfume e eu sei,

Porque ela não tem consciência de mim e eu tenho consciência dela?

Mas o que tem uma coisa com a outra

Para que seja superior ou inferior a ela?

Sim tenho consciência da planta e ela não a tem de mim.

Mas se a forma da consciência é ter consciência, que há nisso?

A planta, se falasse, podia dizer-me: E o teu perfume?

Podia dizer-me: Tu tens consciência porque ter consciência é uma qualidade humana

E só não tenho uma porque sou flor senão seria homem.

Tenho perfume e tu não tens, porque sou flor…

Mas para que me comparo com uma flor, se eu sou eu

E a flor é a flor?

Ah, não comparemos coisa nenhuma, olhemos.

Deixemos análises, metáforas, símiles.

Comparar uma coisa com outra é esquecer essa coisa.

Nenhuma coisa lembra outra se repararmos para ela.

Cada coisa só lembra o que é

E só é o que nada mais é.

Separa-a de todas as outras o facto de que é ela.

(Tudo é nada sem outra coisa que não é).


Além de sermos diferentes, percebermos a realidade de maneiras diferentes. Para termos uma verdadeira comunicação, precisamos aceitar e respeitar a realidade do outro:


Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se tinham zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de porque se tinham zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e o outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se tinham passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.” – Livro do Desassossego


Seremos capazes, portanto, de olhar com admiração e curiosidade “A espantosa realidade das coisas”:


“A espantosa realidade das coisas

É a minha descoberta de todos os dias.

Cada coisa é o que é…”


Ultrapassando o tempo, numa maneira genial, o escritor envia-nos mensagens poderosas, profundas, atuais sobre Presença, Escuta ativa, Confiança, Conexão, Comunicação, sobre quão poderosa é a maneira de olhar para o mundo com curiosidade verdadeira, sem ideias preconcebidas ou impressões prévias, como uma criança. E, só olhando desta maneira, podemos aprender com as mais inesperadas fontes.

Obrigado, Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares!
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